O Decidir dos Professores
 



Cronicas

O Decidir dos Professores

Gabryela Azevedo


Dedicado aos meus professores de jornalismo da Universidade Ceuma.

Enquanto eu lia algumas matérias sobre o incêndio na creche Gente Inocente, em Janaúba, Minas Gerais, e fui tomando conhecimento sobre uma professora chamada Helley de Abreu, uma palavra de uma das frases da minha coleção-de-frases-alheias começou a saltitar cintilante pela minha cabeça, piscando feito vagalume. Decidir.

"(...) Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende. Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir."

Certa vez, um repórter perguntou à Cora Coralina, a poetisa brasileira, o que era viver bem, a resposta, tão simples e tão significante, acabou virando poesia, como quase tudo o que ela falava, porque Cora era inteira poesia, rima feminina em carne viva. Ao escutar pela primeira vez seu diálogo em um documentário no YouTube, fui imediatamente cativada pelo trecho exposto acima, por causa do "decidir". Passei dias dançando com o termo, gastando as horas a enfiar-me na amplitude de sua significância, racionalizando sobre como foi encaixado ali e por que passou a reverberar em meus dias depois de utilizado naquela frase por Coralina, se já o tinha escutado tantas outras vezes. A tragédia em Janaúba acionou a palavra na minha mente, e a palavra me puxou para dançar outra vez.

Helley, a professora, morava em Nova Porteirinha, do outro lado de um rio que separava sua casa de Janaúba, e teve seu último suspiro asfixiado pela fumaça do fogo que devorou seu corpo enquanto tentava salvar os alunos das garras do incêndio. Um dia antes da catástrofe, uma amiga a aconselhou a não ir à aula no dia seguinte, pois ela estava gripada e rouca. Entre o ir ou ficar, a professora decidiu ir. Quando se viu dentro da trama, que obscureceria aquele dia e se alastraria para tantos outros na vida das vítimas, premeditada por um vigia insuspeito, até aquele dia, porque nem todo mundo desconfia, como a Laura do "Uma Duas", de que o inferno se esconda na luz, a professora decidiu lutar. Enfrentou o vigia numa batalha corporal na tentativa de impedi-lo de continuar ateando fogo na creche, enquanto as chamas se alastravam rapidamente pelos corredores e pais atemorizados gritavam do lado de fora. Alimentou o fogo com sua própria pele para proteger a dos alunos enquanto os carregava vez após vez para longe das chamas. Não resistiu aos ferimentos, morreu no hospital.

Encontraram em Helley a heróina de todos os dias, apenas a partir de então. "Na minha cabeça, a imagem dela é de uma heroína", disse a mãe de uma das crianças que ela salvou. A escola foi reformada e o novo nome, para além dos meros substantivo e adjetivo passados, acomoda o sinônimo da professora, porque Helley de Abreu Batista, o nome atual, agora é sinônimo mais do que substantivo. Foi concedido a ela, pelo à época presidente do país, Michel Temer, a Ordem Nacional do Mérito pelo grande exemplo de bravura e coragem. O governo de Minas Gerais a homenageou com a Medalha da Inconfidência, in memoriam.

Mesmo sabendo que não deveria haver necessidade alguma de uma pessoa ser mitificada para poder saber-se um ser humano extraordinário, do lado de cá, enquanto me entusiasmava com o que estavam falando sobre Helley, fiquei desejosa de que ela também soubesse de tudo aquilo, e das possibilidades que deu aos alunos porque decidiu ir à escola naquela manhã. Será que ela ao menos imaginou que suas decisões custariam naquele dia muito mais do que lhe custou nos outros? Que ao atravessar o rio para Janaúba em direção à creche não o atravessaria mais para voltar para casa? De que outras tragédias e abismos o decidir da professora Helley salvou os alunos antes de tentar salvá-los do fogo? Muito antes de tentar salvá-los do fogo? Qual seria a resposta da professora se o Brasil a tivesse enxergado antes do dia em que seu último decidir custou-lhe a vida? Mais de uma semana depois de seu falecimento, a família encontrou no porta-malas de seu carro presentes que ela preparou para dar aos alunos no dia das crianças: lancheiras cheias de doces identificadas com os nomes de cada um deles. Ouso achar que, quando ela lia para eles na sala de aula, os estava salvando do abismo que é o mundo sem o entendimento das letras, o mundo sem o som da pronúncia da palavra escrita. Pequenos gestos de heroísmo do cotidiano.

Durante a faculdade de jornalismo na Universidade Ceuma, descobri que quando o professor entende de verdade a grandeza de seu trabalho, ele amplia para além da sala de aula as possibilidades na vida dos alunos. Os meus metamorfosearam-me, arrancaram-me de certezas absurdas e cegueiras que eu possuía, mesmo com suas decisões mais sutis todas as vezes que entraram pela porta da sala de aula: os métodos escolhidos para organizar e explicar o conteúdo de aprendizagem, o outro para conseguir a atenção da turma; aquela turma enorme e barulhenta, de dar nos nervos - tão determinados e corajosos quanto eu me pegava desejando ser enquanto os observava e aprendia. Mas essa outra história-de-sala-de-aula, assim como a da professora Helley de Abreu, tem pequenos gestos de decisões heroicas demais para caber num texto, e não possuo a capacidade de mostrá-los.


Gabryela Azevedo é uma contadora de histórias da vida real, atraída por questões socioambientais e de direitos humanos, fascinada pela palavra escrita. Formou-se em jornalismo pela Universidade Ceuma em 2021 e integra a Rede de Jovens Lideranças do Impacta Nordeste". Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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